quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO NO SÉCULO XXI – DESAFIOS E OPORTUNIDADES NA OBRA

INTRODUÇÃO: "Fincaram pregos nas suas mãos. Depois disto todo mundo passou a usar chapéu."

Qual a relevância da fé cristã para os nossos dias? A Bíblia têm algo a dizer para o homem moderno? A resposta é sim, em todos os aspectos. Porém, se de um lado, tem-se a Palavra de Deus revelada e de outro os destinatários desta Palavra, como ‘traduzir’ a mensagem de modo que o maior número possível dos destinatários a entendam.

O objetivo deste artigo é apontar os desafios e as oportunidades que se apresentam para a comunicação do evangelho. A hora é de urgência para a evangelização porque as pessoas estão desencantadas com o racionalismo e com o materialismo e começam a oscilar em direção a um misticismo interior, uma espécie de religião informal e mesclada de várias fontes.
Para embasar os argumentos propostos neste artigo, será utilizada a trilogia de
Francis SCHAEFFER, isto é, as obras básicas de sua produção teológica:
A Morte da Razão(2002), O Deus que se Revela(2002) e O Deus que Intervém
(2002). Acredito que este autor, desconhecido do grande público cristão brasileiro, tem muito a contribuir para a correta compreensão do mundo moderno secular e sobre o posicionamento da igreja para cumprir com eficácia a missão de ser ‘sal’ e ‘luz’ no mundo. Na obra de SCHAEFFER destaca-se uma nota sobre a comunicação do evangelho que é oportuno registrar.

Como ponto de partida, pretende-se tratar da natureza da evangelização, como sendo, de um lado, uma tarefa prioritária da igreja e, de outro, as limitações internas e externas que se opõem à igreja. Feita esta análise, apresento alguns desafios e oportunidades que a igreja deste tempo deve considerar. É verdade que as pessoas são menos propensas à prática religiosa formal, mas também é verdade que hoje as pessoas estão mais desencantadas e solitárias. O racionalismo materialista não atendeu à expectativa de prazer e satisfação e o homem moderno sabe que não há esperança.

Mesmo desesperadas, muitas pessoas, por uma questão de honestidade, não estão dispostas a adotarem uma crença formal, embora acabem compondo seu próprio conjunto de crenças. Por isto, diz SCHAEFFER, é fundamental que os cristãos tenham um posicionamento claro sobre a fé na revelação de Deus. Como os cristãos podem defender a revelação em um cenário racional iluminista? Como falar da Bíblia para o homem moderno? SCHAEFFER apresenta exorta a igreja a reassumir a missão de defender e comunicar a fé cristã de modo que as pessoas entendam a mensagem. A questão é: Se os cristãos não conhecerem a mente e o coração das pessoas ao seu redor, como poderão anunciar a elas o evangelho de Jesus Cristo? A igreja tem uma oportunidade de ouro de apresentar humanidade, pessoalidade, valores e rumo seguro para um mundo caótico. Mas para tanto, os cristãos devem compreender e comunicar com amor e interesse real pelas pessoas.

1 - A NATUREZA DA EVANGELIZAÇÃO

A natureza da evangelização bem poderia ser comparada a uma carta dirigida por certo homem a seus familiares distantes que moram em um país de outra fala. Tem-se aí o emissor, a mensagem, o canal e seus destinatários, porém, com a uma variável interpondo-se como complicador – a linguagem. Em termos simples, é esta a questão da revelação. De um lado, o Deus infinito-pessoal como emissor e, de outro, o homem finito-pessoal como destinatário e, como canal entre eles, as Escrituras contendo a revelação.

O que se entende por revelação? A iniciativa do Deus Criador, primeiro, em comunicar de si mesmo aos homens e, segundo, comunicar o que de outra forma jamais seria alcançado por eles. Quais os canais de comunicação? A obra da criação,3 depois, a palavra inspirada – colacionada nas Escrituras Sagradas4 – e, acima de todos, a pessoa de Jesus.5 A constatação de que a complexidade e diversidade do universo apontam para uma mente inteligente é um indicativo importante para o conhecimento de Deus. Porém, o Criador foi além ao escolher homens que registrassem a revelação de seus planos e sua intervenção na história. Além de todas estas sinalizações, como revelação máxima, ele enviou
Jesus, a expressão exata de tudo que ele é em sua natureza e essência.

Retomando a analogia da carta acima referida, no caso da revelação, qual é a variável que interfere na mensagem? De acordo com as Escrituras e com os fatos observados na história da evangelização, é que os homens não mais entendem a linguagem de Deus devido ao pecado e à culpa. A conseqüência da ruptura dos homens com o governo de Deus é que eles perderam acesso à fonte de vida e à sua referência existencial. As Escrituras indicam que o pecado faz separação entre Deus e o homem, uma vez que o Todo-Santo não coabita com o mal.

Realmente, o homem não tem possibilidade de se comunicar e relacionar com Deus. No livro do Gênesis, Moisés dá a entender que Deus vinha ao encontro do primeiro casal e mantinha contato com eles diariamente, mas após a Queda, homem e mulher foram expulsos do Éden e perderam acesso ao Criador. O Éden representa, neste cenário, as delícias da comunhão plena do homem com o seu Criador e a expulsão representa a perda do acesso a Deus.

A partir da queda, nenhuma comunicação é possível entre os homens e Deus, porque o relacionamento se perdeu e os homens não dispõem de meios próprios para retomarem o diálogo. É justamente por estas razões que a revelação se reveste de importância fundamental, uma vez que se trata de iniciativa exclusiva de Deus. Se há alguma possibilidade de comunicação e relacionamento é porque Deus não apenas tomou a iniciativa, mas também realizou a obra inteira de remover os impedimentos e abrir caminho para os homens retornarem à comunhão original. Este plano de ‘re-ligação’ dos homens com Deus é a própria essência do evangelho.

O que é, então, o evangelho? A notícia de que Deus proveu os meios para resgatar o homem da culpa moral e da solidão existencial e restabelecer a comunhão perdida. Qual a expressão máxima deste plano de restauração? A pessoa de Jesus Cristo, o Deus feito Homem que se entregou voluntariamente como expiação da culpa e restauração da comunhão – universal e eternamente.


Feita esta apresentação, a pergunta que se coloca é: por quais motivos os homens não recebem e não compreendem a mensagem? Se Deus tomou toda iniciativa para uma perfeita ‘re-comunhão’, porque ainda os homens permanecem excluídos? Há defeito na mensagem? Há interferências? Quais? O plano de redenção é limitado? Pela extensão deste artigo, propõem-se apenas duas hipóteses:
(a) o destinatário rejeita a mensagem por incapacidade de compreender seu significado ou (b) o destinatário compreende a mensagem, mas a rejeita franca e deliberadamente.

Nesta segunda hipótese, deve-se considerar a própria natureza do pecado que é rebelião contra Deus, rejeição de seu governo e autonomia arrogante. Mas na primeira hipótese, que interessa mais diretamente ao escopo deste artigo, está a questão da linguagem. Da parte do emissor, Deus tomou proveu os meios para que a mensagem seja inteligível a todos os homens, de todos os tempos, de todos os lugares11 e de todas as culturas. Qual o papel da igreja neste processo de transmissão do evangelho? A igreja foi comissionada diretamente pelo Senhor Jesus a transmitir “todas as coisas que vos tenho ordenado” recebendo para isto a capacitação do Espírito Santo.

Obviamente, em ambas as hipóteses aventadas, há uma interferência espiritual contra a aceitação e compreensão do evangelho que não pode ser ignorada. Quer seja por rebelião, quer seja por incompreensão, o cristão não pode ignorar que há uma interferência espiritual contrária à fé. Paulo diz que, embora ele pregue abertamente o evangelho, há como que um ‘véu’ que encobre o coração e embota os sentidos dos incrédulos. Ele defende seu ministério de evangelização como sendo dirigido a todos os homens, mas reconhece que a mensagem permanece encoberta para alguns, nos quais “o deus deste século cegou o entendimento dos incrédulos”, aduzindo claramente que a interferência espiritual se dá também no campo do intelecto. Se por um lado, “a fé não é de todos”, por outro, o cristão que comunica o evangelho não sabe os que haverão de crer, portanto, mesmo dizendo que os homens rejeitariam a sã doutrina, Paulo insiste com o jovem Timóteo que pregue a tempo e fora de tempo, com toda longanimidade e paciência.

Consideradas, então, todas estas circunstâncias que interferem naturalmente na comunicação do evangelho, persistem as perguntas: como os cristãos podem comunicar o evangelho ao homem moderno? Quais os principais focos de resistência? Quais são os principais desafios internos e externos? Quais as estratégias mais indicadas para este tempo? Quais os erros e recuos da igreja que devem ser corrigidos?
O apóstolo Paulo afirma que é a pregação da palavra de Cristo que desperta fé para salvação, mas pergunta: “como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão se não há quem pregue?” A pergunta que este artigo propõe, na seqüência deste raciocínio de Paulo, é: como as pessoas entenderão, se os mensageiros pregarem em outro
‘idioma’?

2 - DESAFIOS E OPORTUNIDADES PARA A EVANGELIZAÇÃO

SCHAEFFER diz que os cristãos perdem muitas oportunidades de evangelização por desconhecerem a natureza do dilema humano. Os cristãos se concentram na visão ‘micro’, mas falham na ‘macro’. Em geral os cristãos desprezam a filosofia e condenam o que diz respeito ao intelecto. Porém, como todo ser humano tem sua visão de mundo, toda pessoa é, em certo sentido, um filósofo. Quem são os ‘filósofos’ e os ‘gurus’ que fazem a cabeça da nossa geração? Artistas como Raul Seixas, Cazuza, Caetano Veloso, Chico Buarque e o próprio Paulo Coelho, talvez, são exemplos de idealistas que clamam, a seu modo, por paz, por uma nova sociedade, mas lutam no vácuo sem qualquer chance de realizar seus ideais, porque partem de si mesmos.


“Não se prega o evangelho no vazio. Prega-se dentro de um contexto. O nosso contexto é mudancista e é moldado pela pós-modernidade”. Desprezar a filosofia do indivíduo é um erro que resulta na perda de contato dos cristãos com o mundo ao seu redor. SCHAEFFER diz que o problema não é que os cristãos não saibam as respostas; o que eles desconhecem são as perguntas. Devemos ter em mente que o cristianismo responde às questões incontornáveis da filosofia propriamente dita, porque a verdade revelada na Bíblia diz respeito a tudo que existe, e não apenas ao campo religioso ou a seus dogmas. A igreja tem o que comunicar ao mundo e o mundo poderá entender esta mensagem, porque a Palavra de Deus tem resposta para os problemas reais do ser humano.

Em contraste com o pensamento moderno, os cristãos têm a revelação verbal de Deus, ou seja, eles têm com quem falar. Assim, os cristãos já partem de uma origem totalmente diferente: Há um Deus pessoal e infinito que tomou a iniciativa de revelar a si mesmo e revelar a criação. SCHAEFFER observa que a revelação de Deus não é exaustiva, mas é verdadeira e plenamente confiável. O “Deus que se revela” é o único que supre a unidade necessária ao dilema do universal e particular no campo do conhecimento.

O pensamento moderno não tem explicação para as características que fazem o homem ser identificado como humano, como, por exemplo, a capacidade de amar. A Bíblia afirma categoricamente que o homem foi criado à imagem de Deus, o que significa que ele tem em si, não a programação de uma máquina, mas a capacidade de escolha com que Deus o dotou, o que o diferencia das plantas, dos animais e da máquina. Ele tem sentimentos, emoções, desejos, e por isso consegue amar e receber amor, e mais que isso – anseia por amor em todas as maneiras como ele pode ser expresso: no relacionamento com seus semelhantes e na busca de sua própria origem, identidade e sentido. Por isto, o novo mandamento23 é tão importante na fé cristã: se cremos que Deus é amor e que todo homem é criado à imagem de Deus, logo, todo ser humano é capaz de reagir ao amor verdadeiro. SCHAEFFER diz que as pessoas ‘sem-Bíblia’, ou
‘desigrejadas.’ representam tanto um (a) desafio como uma (b) oportunidade
para os cristãos.

(a) Desafio, porque a pulverização das religiões oficiais em crenças e convicções pessoais particulares, mescladas de várias orientações e influências filosóficas, exigirão que o cristão seja, primeiro, firme em suas convicções e, segundo, capaz de dialogar com esse homem ‘sem-Bíblia’. Os cristãos não podem desprezar as formas de pensamento dessa geração. De um lado, os próprios cristãos têm perdido o hábito de estudar a Palavra de Deus e, de outro, as pessoas não-cristãs não reconhecem a autoridade das Escrituras. É um equívoco imaginar que as pessoas ainda vêem o mundo de um ponto-de-vista cristão. É necessário perceber que a ideologia ainda predominante é o iluminismo racionalista e estar preparado para apresentar as razões da fé cristã26 e dialogar com as pessoas tanto seculares como místicas, mostrando-lhes como o mundo e sua própria natureza humana apontam para a existência de Deus.

(b) É também um tempo de oportunidade excepcional, porque as pessoas estão perdidas e em busca de valores espirituais consistentes. O homem moderno está destinado a conviver com as conseqüências inevitáveis da ruína moral e da desesperança. No sistema de pensamento pós-iluminista não há saída e as pessoas estão conscientes disto. O racionalismo não oferece respostas para o sentido e propósito da vida. O niilismo, por sua vez, deixa de formular as próprias perguntas. O irracionalismo está fazendo com que as pessoas se voltem para um misticismo interior que as deixa a sós consigo mesmas. É hora de a igreja refletir seriamente sobre esta oportunidade de cumprir a missão de levar a luz de Cristo ao mundo. A Bíblia não diz que as trevas irão aumentando de modo a ofuscar a luz, mas, pelo contrário, que “as trevas vão se dissipando e a verdadeira luz já brilha.”

Se os cristãos têm as respostas, diz SCHAEFFER, por que falar destas grandes verdades de forma que ninguém entende? De modo geral, os cristãos incorrem em dois erros: (a) alguns dizem que a evangelização deve ser simples e que basta depender do Espírito Santo; (b) outros dizem que a missão da igreja é apenas semear o evangelho; o resto é com Deus; A este respeito, SCHAEFFER
contrapõe duas objeções consideráveis:

(a) “É preciso pregar o Evangelhosimples, de forma que sejasimples para a pessoa com quem você está falando, ou ele não serásimples de forma alguma” [itálico acrescentado]. Ele diz que o cristão deve estar preparado para resistir ao espírito do mundo, “na forma que [este espírito] estiver se manifestando em sua própria geração” – pois “o espírito da época nem sempre assume a mesma forma” –, senão “não estará resistindo ao espírito do mundo de forma alguma”.
(b) Quanto à missão da igreja, SCHAEFFER cita uma frase de Lutero que toca este ponto diretamente:

“Se eu professar com a mais alta voz e com a mais clara exposição cada pormenor da verdade de Deus, exceto precisamente aquele pequeno ponto ao qual o mundo e o demônio estão naquele momento atacando, eu não estou confessando Cristo, ainda que ousadamente eu possa estar professando a Cristo. Onde se trava a batalha, ali a lealdade do soldado é provada, e estar em outro campo de batalha que não este é apenas deserção e desgraça, se ele foge deste ponto.”

Se nós não entendermos as mudanças ocorridas no nosso mundo, estaremos falando apenas para nós mesmos em um ‘eclesiocentrismo’ irresponsável e estéril. É necessário, portanto, discernir, em nível mais profundo, a natureza do pensamento moderno e os fenômenos do pluralismo, privatismo e secularismo que influem no comportamento da sociedade contemporânea.

Considerando os dois lados da comunicação do evangelho como sendo a igreja e o mundo, é necessário identificar os pontos de contato entre estes dois universos tão distintos. Neste sentido, a validade da revelação cristã é fundamental, porque todo conhecimento de Deus útil para salvação do homem está baseado na Bíblia – a Palavra revelada – e em Jesus – a Palavra encarnada.
A fé cristã, então, se fundamenta no fato da revelação: o Deus infinito-pessoal criou o homem à sua imagem e semelhança – um ser pessoal – e Ele mesmo tomou a iniciativa de se revelar de forma inteligível para o homem, a fim de que este saiba como viver uma vida sã. A Palavra de Deus provê o padrão de uma moral verdadeira e também ajuda o homem a articular o conhecimento e modo de pensar.

SCHAEFFER diz que a discussão sobre a revelação se dá a partir de dois pressupostos:
(a) primeiro, da uniformidade das causas naturais em um sistema fechado e,
(b) segundo, da uniformidade das causas naturais em um sistema aberto, sujeito a ser reordenado por Deus e pelo homem.

(a) No primeiro caso, não há como falar em revelação, pois qualquer conhecimento além da razão humana é absurdo. Neste caso, diz o autor, não há saída, pois nem mesmo é possível saber com certeza sobre o próprio homem ou sobre o universo, uma vez que a razão se apóia no humano – particular. Ao seguir este ponto de vista, a conclusão é apenas o homem-máquina, desumanizado e sem esperança.

(b) Segundo, o conhecimento em um sistema aberto admite a revelação como fonte de conhecimento. SCHAEFFER diz que esta foi a base que permitiu o desenvolvimento da ciência, pois esta jamais poderia ter surgido em um ambiente de incertezas e pessimismo do homem moderno31, afinal, lembra ele, os primeiros cientistas tinham a certeza de que o universo podia ser investigado pela razão.

Partindo, então, dos fatos da existência do único Deus pessoal infinito e de que ele criou o homem como único ser verbal, SCHAEFFER diz que o homem é verbal porque reflete o que sempre existiu na natureza de Deus, pois antes de toda a criação, o Deus triúno se comunicava na Trindade: “Façamos o homem à nossa imagem”.32 Se Deus se comunica, o homem, criado à semelhança de Deus, também é verbal. Ora, diz SCHAEFFER, se Deus criou o homem com capacidade para se comunicar com os outros homens, é perfeitamente natural que o próprio Deus se comunique com os homens de forma proposicional e inteligível.

SCHAEFFER insiste em que o cristão deve, não apenas alimentar-se de “toda Palavra que sai da boca de Deus”, mas também ter uma convicção clara quanto à autoridade e validade intelectual da revelação de Deus nas Escrituras. No livro O Deus que se Revela, ele apresenta a revelação de Deus como sendo ‘verbalizada’ e ‘assertiva’ ou ‘proposicional’. A revelação parte do fato de que há um Deus pessoal infinito, criador de todas as coisas. SCHAEFFER defende que a revelação resolve o problema da dicotomia epistemológica ao prover a unidade do conhecimento e estabelecer uma origem pessoal no ‘superior’. O fato de Deus ser pessoal e tomar a iniciativa de revelar ao homem sobre si mesmo e sobre o universo provê a unidade absoluta que os homens têm buscado ao longo de toda a história humana.

Expostos estes argumentos, restam apenas duas opções:
(a) se os pressupostos são rejeitados, não há nenhuma explicação para o homem e para o universo; (b) se são aceitos, a revelação conduz ao fundamento universal do conhecimento, bem como alinha a homem ao que se observa na experiência real. A revelação cristã não é mística ou abstrata, mas está em consonância com a realidade. Todos os homens são ‘obrigados’ a viverem em correlação com as coisas que existem como elas são de fato, mesmo que eles digam que não há sentido e tudo é absurdo. Tanto no campo da metafísica, da moral e da epistemologia, os homens não podem negar sua singularidade, seu senso de moral e sua necessidade de sentido.

As Escrituras oferecem a unidade de conhecimento que fala do universo, do homem, da natureza e, sobretudo, fala de Deus. Somente a revelação bíblica resolve o dilema do homem: há um Deus que fala. O refrão “e disse Deus” ecoa por toda a Bíblia e por toda a história em todos os campos de conhecimento. O fato de haver um Deus como origem de tudo estabelece a inter-relação entre todas as coisas que existem de modo articulado e racionável. Deus criou o universo e criou o homem para viver neste mundo e não em Marte ou em Vênus. Não há caos no universo de Deus. Ele é o absoluto que dá sentido à existência e a todas as coisas.34 SCHAEFFER conclui dizendo que o homem, ao admitir seu dilema, pode analisar as Escrituras como a revelação de Deus sobre as coisas que existem e sobre o seu próprio estado. A revelação bíblica resolve a existência do universo, dá sentido à vida do homem e oferece uma ética moral firmada nos absolutos de Deus. O título do livro O Deus que se Revela em inglês é uma afirmação categórica desta verdade: ‘Deus existe e não está em silêncio’.

4 - BÍBLIA, PENSAMENTO MODERNO E O CONCEITO DE VERDADE

A Bíblia é um livro real, inspirado por Deus, cuja linguagem expressa claramente o sistema de doutrinas no qual se fundamenta o cristianismo. A Bíblia é a infalível Palavra de Deus, isenta de erros, autêntica fonte de verdade, embora não exaustiva, ou seja, ela não esgota toda a verdade que há.

A leitura da Bíblia é fundamental para o homem chegar à revelação de Deus, pois a Bíblia:
(a) fala assertivamente sobre coisas, fatos e princípios e também
(b) ensina sobre a maneira como Deus age no mundo. SCHAEFFER diz que a Bíblia nos leva à comunhão com Deus, mas também nos permite construir uma mentalidade correta e equilibrada a respeito das coisas, do universo e de nós mesmos. Por meio da Bíblia, nós podemos constatar e compreender a ‘coerência da criação’. Deus criou o mundo e intervém no mundo de modo a confirmar o que ele disse. Este conhecimento de Deus dá segurança e paz. O pensamento moderno pressiona por todos os meios, assumindo uma forma absolutista a ponto de não mais admitir questionamentos. Somente o conhecimento firme da Palavra de Deus poderá ajudar o homem a resistir à sedução e à pressão do pensamento moderno humanista.

A Bíblia não contém apenas histórias de Deus, mas fala do que é, de tudo que existe, de toda ciência. Isto não quer dizer que o conhecimento científico deva ser desprezado. Ela não é exaustiva, mesmo porque nós somos finitos e jamais poderíamos receber uma revelação exaustiva de Deus e de tudo que existe. O fato de Deus haver revelado sobre o universo, não torna o conhecimento humano estático. O homem foi feito à imagem de Deus, ser racional, capaz de pensar, explorar e descobrir verdades sobre as coisas que existem.
A Bíblia é plenamente capaz de sustentar-se a si mesma, pois dá respostas aos
problemas reais do homem. Ela está sujeita a provas e a investigação. Não faria sentido Deus criar o homem racional e depois pedir que ele renuncie ou anule sua razão para poder compreender a revelação. Mediante a revelação bíblica, o homem pode crer na existência de Deus e curvar-se diante dele, como ser humano criado por Deus – no sentido metafísico – e como culpados – no sentido moral – depositando nossa confiança na solução provida por Deus, em Cristo, para, enfim, ter comunhão com nosso Criador.

SCHAEFFER diz que a ‘verdade’ não está associada apenas à ortodoxia, nem às crenças e nem mesmo às Escrituras. Segundo ele, a ‘verdade’ se refere, não apenas aos conceitos religiosos, mas a tudo que existe, partindo do fato que Deus existe. É esta verdade que os cristãos precisam apresentar ao mundo, uma verdade integral, completamente bíblica, sem omissões nem acréscimos. Assim, a Bíblia é o ponto de partida para o conhecimento da criação.

Se o cristão compreender a natureza da revelação bíblica ele poderá retomar um poderoso ministério de apologia da fé cristã sem receio da pretensa aura de racionalidade do pensamento moderno.

5 - DIRETRIZES PARA COMUNICAÇÃO DO EVANGELHO

Como transpor as barreiras de comunicação para alcançar as pessoas de outros grupos sociais e culturais? Como alcançar a mente de outra pessoa, de modo que a mensagem seja compreendida pelo receptor? Para responder a esta pergunta, SCHAEFFER lembra que, para haver comunicação, é necessário que o emissor e o receptor falem a mesma linguagem, portanto, o cristão deve aprender a linguagem da pessoa com quem pretende se comunicar. COELHO diz que “é preciso conhecer para quem pregamos”, citando o apóstolo Paulo: "Fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, para por todos os meios chegar a salvar alguns".

A questão da linguagem é complexa especialmente porque o sentido das palavras muda no decorrer do tempo e do espaço, seja cultural, social ou outro. Se o cristão não compreender a linguagem de seu ouvinte e se não evitar ‘jargões’ religiosos, dificilmente haverá evangelização.

Então, por onde o cristão deve começar? Pelo amor. O homem, para utilizar a linguagem de Pascal, é “grande” e “miserável”, ao mesmo tempo. A pessoa diante dele, independente de sua posição social ou do grau de rebelião em que se encontre, ainda é o ser maravilhoso que Deus criou, dotada de valor e a comunicação do evangelho deve ser orientada por respeito e interesse verdadeiro. SCHAEFFER insiste que o cristão não é superior ao não-cristão. O cristão é apenas uma pessoa que aceitou a solução de Deus, enquanto que o não-cristão se mantém rebelde contra o Criador. Contudo, todos os homens são da mesma natureza e são todos objetos do amor de Deus.

SCHAEFFER afirma que todas as pessoas possuem um conjunto de pressupostos que a levarão a certas conclusões lógicas. Porém, nenhum homem consegue viver de modo completamente coerente com seus pressupostos, com sua visão de mundo, porque a realidade se compõe de duas partes:
(a) externa/mundo
(b) interna/hombridade. SCHAEFFER observa que, independente do que a pessoa acredita, isto não muda a realidade da existência. Este é justamente o ponto de tensão do homem não-cristão: seus pressupostos não se coadunam com o universo criado por Deus. O cristão deve considerar que todos os homens, de qualquer classe social ou cultural, experimentam o conflito da incoerência e que, portanto, vive sob tensão existencial. Ninguém consegue manter consistência em relação aos seus pressupostos, pois quanto mais lógico ele for em relação a estes pressupostos, mais distante ele estará do mundo real e vice-versa. Este conflito entre o mundo interior e exterior é o que gera tensão e desespero. SCHAEFFER afirma que essa tensão não é uma coisa abstrata, mas real, pois o coração do homem lhe diz algo sobre o mundo real; e embora os padrões morais variem entre os homens, todos os homens, em qualquer que seja a cultura, têm algum padrão moral. Esse confronto entre os pressupostos do homem e o mundo real gera nela muita tensão, embora muitas vezes ele nem mesmo tome conhecimento do fato. O cristão deve confiar no Espírito Santo para, com amor, descobrir onde está o ponto de tensão.

SCHAEFFER afirma que essa incoerência que, de uma forma ou outra, acompanha os pensamentos e a forma de vida do homem, representa uma porta de comunicação para o cristão. Não importam quais sejam os pressupostos do homem, ele terá que viver neste mundo criado por Deus. Este é o terreno em que ambos, cristãos e não-cristãos estão pisando, e a partir daí pode-se iniciar uma
conversação compreensível.

Segundo SCHAEFFER, após descobrir o ponto de tensão de uma pessoa, o cristão pode fazer com que ela chegue às conclusões lógicas de seus próprios pressupostos não-cristãos. Confrontar os pressupostos de uma pessoa pode ser uma experiência dolorosa, por isto ele adverte a não fazê-lo como um exercício intelectual ou um jogo, mas tão-somente como uma ação necessária para obter resultados espirituais sob a direção do Espírito Santo. Se a pessoa reconhece sua necessidade espiritual e tem disposição para ouvir o evangelho, não é necessário confrontar seus, mas apenas comunicar as boas novas do plano de Deus.

A missão do cristão é transmitir consistentemente a ‘verdade verdadeira’ e não um sentimento religioso ou um condicionamento psicológico. Antes que a pessoa se torne cristã, é necessário que ela compreenda três pontos:
(a) a ‘verdade verdadeira’,
(b) a culpa real e
(c) o fato histórico. A ‘verdade verdadeira’ é aquela a verdade baseada em fatos, que tem sentido real. A culpa real é aquela contraída pelo homem tem diante de um Deus justo, e não apenas um sentimento vago de culpa. O fato histórico diz que o Evangelho é baseado em verdades e fatos que podem ser compreendidos e verificados historicamente. A obra completa de Cristo por meio de sua morte na cruz foi tão real, diz SCHAEFFER, que se estivéssemos lá naquele dia, poderíamos esfregar os dedos na cruz e enfiar uma farpa na mão.

Todos os questionamentos da pessoa devem ser respondidos honestamente. Ela não pode ser simplesmente instada a crer, pois o conhecimento da verdade é essencial à fé que leva à justificação. SCHAEFFER desafia cada cristão a responder a si mesmo a pergunta: “O cristianismo é verdadeiro?” Ele conclui dizendo que o estudo das Escrituras é fundamental para garantir que a apresentação do cristianismo seja um posicionamento verdadeiramente bíblico e confiável.

SCHAEFFER diz que todo homem mantém um teto acima de sua cabeça, com o qual tenta se proteger de seu ponto de tensão e dos golpes do mundo real no qual está inserido e dos dilemas interiores. O cristão deve, com amor, remover esse teto de modo que a verdade do mundo externo e a verdade acerca do homem caíam sobre ele. Isso pode provocar dor, pois a verdade coloca a pessoa desprotegida e expõe suas feridas. O cristão não deve impor as verdades dogmáticas das Escrituras, mas oferecer-lhe outro teto, falando acerca das verdades que arrancou da pessoa: a verdade sobre o mundo externo e sobre a identidade do homem. Nesse ponto não se deve falar em julgamentos ou no inferno, pois para o homem moderno, segundo SCHAEFFER, este conceito é inconcebível.

A tarefa do cristão é dizer ao homem que sua morte é moral e não apenas uma morte metafísica, como ele crê, e então lhe mostrar a solução que ele não conhece. Muitas vezes o homem moderno não está disposto a aceitar a solução de Deus. O cristão deve encarar esta possibilidade. O homem cujo teto foi arrancado, nesse caso, se sentirá pior do que antes, porque agora conhece a verdade, mas não está disposto a aceitar a solução para o seu dilema.

O início da fé cristã é a realidade de que Deus existe. Partindo deste ponto, inferimos que o dilema do homem não é uma questão metafísica, mas uma questão moral. A fé cristã não consiste de princípios vagos ou indefinidos, mas está fundamentada na obra completa de Cristo na cruz. A fé não é o verdadeiro fundamento de si própria, e sim a pessoa de Cristo e sua obra.

A pessoa que deseja se tornar cristã deve reconhecer que é uma criatura finita diante de um Deus infinito. Ela deve admitir seu próprio pecado e sua culpa moral verdadeira diante de Deus. O ser humano sendo finito não consegue lidar com a culpa diante de um Deus infinito. Esse é o momento de confrontar a pessoa com a promessa: “Crê no Senhor Jesus e serás salvo, tu e tua casa”. Esta é a solução de Deus para lidar com a culpa humana.

Na ação de crer em Cristo estão implícitas quatro questões significativas e indispensáveis:
(a) Acreditar que Deus existe, que é um Deus pessoal e infinito e que Jesus Cristo é Deus;
(b) Admitir que é realmente culpada, no sentido moral, na presença deste Deus;
(c) Acreditar que Cristo morreu na cruz, no tempo, no espaço e na história, e que por sua morte ter sido substitutiva, ele sofreu o castigo de Deus pelo pecado da humanidade, sendo sua obra perfeita e completa no sentido de justificar totalmente o homem diante de Deus;
(d) Com base nas promessas de Deus e nas Escrituras, a pessoa deve estar disposta a deixar de confiar em si mesma e confiar sua vida a Cristo como seu Salvador pessoal.

SCHAEFFER diz que quando apresenta a Bíblia para uma pessoa não-cristã, ele não apela para uma autoridade cega, como se a pessoa devesse simplesmente acreditar no que ele está dizendo sem questionar. O livro de Atos registra um elogio aos judeus de Beréia por terem tido o cuidado de conferir se as novidades que Paulo estava pregando eram coerentes com as Escrituras. Ele manifesta firme convicção de que a Bíblia dá testemunho de si mesma e pode sustentar-se a si mesma. Deus chama os homens a crerem e a fazerem prova dele.

CONCLUSÃO

Há um certo consenso de que a iluminismo está em crise e que esta tendência em direção ao fim do modernismo pode ser observada em várias áreas de conhecimento, da cultura e do comportamento. Os cristãos, especialmente os latino-americanos, têm apresentado uma dificuldade considerável em compreender o mundo ao seu redor, talvez porque a própria formação histórica deste novo mundo foi conduzida em grande parte por uma Igreja Católica ainda imersa nas fronteiras do mundo medieval – a península ibérica do século XVI. Por esta e outras influências históricas, o nosso mundo se tornou um caldeirão de crenças. As estatísticas oficiais demonstram – e qualquer um pode observar isto – que o comportamento religioso do brasileiro está mudando rapidamente, a exemplo do que já ocorre em outros países ocidentais. Embora as pessoas declarem professar uma religião, esta é apenas uma identidade nominal, pois a prática religiosa está cada vez mais restrita ao campo do individual, constituída ao bel-prazer de cada um, resultando em uma mescla de várias influências que vão desde esoterismo, ocultismo, astrologia, bruxaria, animismo, filosofias orientais, objetos de sorte, até simples superstições.

Este fenômeno sociológico tem agravado o sincretismo religioso típico do brasileiro, levando ao enfraquecimento da identidade religiosa formal. Não causa estranheza que as pessoas procurem respostas para seus dilemas fora de seu sistema religioso, porque, enquanto se encontrarem destituídas do relacionamento com Deus, o que lhes resta, como já vimos, é o puro desespero. O problema é quando este comportamento atinge o terreno dos cristãos verdadeiros, outrora bem definido, e quando eles passam a assimilar sutilmente modismos duvidosos, contrários a fé cristã genuína.

A tarefa é imensa. Há muito território perdido uma vez que as transformações de que trata este artigo não abrangem uns poucos anos, mas, pelo contrário, décadas e, mesmo, séculos. A própria mentalidade da igreja e dos cristãos foi formada neste ‘mundo’ e fora do mundo há apenas o ‘gueto eclesiástico’. Por isto, o desafio é encarnar a mensagem no mundo e dialogar com as pessoas ao seu redor, procurando aprender a dinâmica da linguagem e estudar a sociedade em que vivemos. SCHAEFFER mostra que os cristãos dispõem de todos os meios para cumprir sua missão, mas o êxito deste ministério requer dedicação e sacrifício.

O ponto forte das obras de SCHAEFFER é a fina percepção do mundo e da missão da igreja. Ele desafia apaixonadamente os cristãos a entenderem o modo de pensar das pessoas ao seu redor, não para se confundirem com elas, mas para as confrontarem com o cristianismo bíblico-histórico e poderem cumprir efetivamente a comissão de Jesus Cristo. O desafio é também no sentido de construir sobre o fundamento cristão e legar uma herança saudável às próximas gerações da igreja. Em uma época em que as pessoas são levadas a simplesmente aceitar, a não questionar e a não pensar, SCHAEFFER desafia os cristãos a inverterem este curso para serem pessoas da Palavra, do pensamento, da reflexão e do discernimento. Em meio à desconstrução de qualquer conceito de moral e de relativização da verdade, ele desafia os cristãos a viverem uma vida baseada na moral cristã e nos pressupostos antitéticos da Palavra de Deus.

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